Confusão

A confusão dos dados que possuímos sobre nós próprios deve-se sobretudo à presença, entre os factos positivos, de resíduos de sistemas científicos, filosóficos e religiosos.

A adesão do nosso espírito a qualquer sistema modifica o aspecto e a significação dos fenómenos por nós observados. Em todos os tempos, a humanidade se contemplou através dos vidros de cor das doutrinas, das crenças e das ilusões.

São tais noções, falsas e inexactas, que é preciso suprimir.

Como escrevia Claude Bernard, é necessário libertarmo-nos de sistemas filosóficos e científicos como se quebrássemos as cadeias duma escravidão intelectual.

Tal libertação ainda não está realizada. Os biologistas, sobretudo os educadores, os economistas e os sociólogos defrontam-se com problemas de extrema complexidade, cederam muitas vezes à tentação de construir hipóteses e torná-las depois artigos de fé. E os sábios imobilizaram-se em fórmulas tão rígidas como os dogmas duma religião.

Encontramo-nos com a importuna recordação de erros semelhantes em todas as ciências. Um dos mais célebres deu lugar à grande querela dos vitalistas e dos mecanicistas, cuja futilidade hoje nos assombra.

Os vitalistas supunham que o organismo era uma máquina cujas partes se integravam graças a um factor que não era físico-químico. Segundo eles, os “processus” de que dependia a unidade do ser vivo eram dirigidas por um princípio independente, uma inteléquia, uma ideia análoga à do engenheiro que desenha uma máquina.

Esse agente autónomo não era uma forma de energia e não criava energia. Ocupava-se apenas com a direcção do organismo.

Evidentemente que a inteléquia não é um conceito operacional. É uma pura construção do espírito.

Em suma, os vitalistas consideravam o corpo como uma máquina dirigida por um engenheiro, ao qual davam o nome de inteléquia. E não se davam conta de que esse engenheiro, essa inteléquia, não era senão a sua própria inteligência.

Quanto aos mecanicistas, esses pensavam que todos os fenómenos fisiológicos se explicavam pelas leis da física, da química e da mecânica.

Também eles construíam uma máquina, e, como os vitalistas, eram eles os engenheiros dessa máquina.

Então, como Woodger observou, esqueciam a existência do engenheiro. Semelhante conceito não é operacional.

É evidente que mecanicismo e vitalismo devem ser postos de lado pela mesma razão que os outros sistemas. Ao mesmo tempo, precisamos de nos libertar da multidão de ilusões, de erros, de observações mal feitas, de falsos problemas postos pelos pobres de espírito da ciência, das pseudo-invenções dos charlatães, dos sábios celebrados pela imprensa quotidiana.

E também dos trabalhos tristemente inúteis, dos longos estudos de coisas sem significação, inextricável embrulhada que se eleva como uma montanha desde que a investigação científica se tornou uma profissão como a de professor, médico ou enfermeiro,, pastor ou assistente social ou ainda jornalista ou empregado bancário. Feita esta eliminação, restam-nos os resultados do paciente esforço de todas as ciências que se ocupam do homem, do tesouro de observações e de experiências que acumulam.