O corpo humano - II

As necessidades metodológicas obrigam-nos a dividir em fragmentos esse conjunto constitucionalmente indivisível, e a descrever, por um lado, as células e os tecidos, e por outro, o meio interorgânico, o sangue e os humores.

As células formam sociedades a que se dá o nome de tecidos e de órgãos. Mas a analogia destas sociedades com as comunidades de insectos e com as comunidades humanas é muito superficial.

Porque a individualidade das células é muito menor do que a dos homens e mesmo dos insectos. Quer numas quer noutras destas sociedades, as regras que parecem unir os indivíduos são a expressão das suas propriedades inerentes.

É mais fácil conhecer os caracteres dos seres humanos do que os das sociedades humanas.

Com as sociedades celulares dá-se o contrário. Os anatomistas sabem desde há muito quais são os caracteres gerais dos tecidos e dos órgãos. Mas só recentemente conseguiram analisar as propriedades das células, isto é, dos indivíduos que constituem as sociedades orgânicas.

Graças aos processos que permitem cultivar os tecidos em frascos, foi possível conhecê-los com mais profundidade. Manifestavam-se entre os poderes não suspeitados das células, as suas espantosas propriedades, que, virtuais nas condições vulgares da vida, são susceptíveis de se actualizar sob a influência de certos estados físico-químicos do meio.

São estes caracteres funcionais, e não apenas os seus caracteres anatómicos, que as tornam capazes de constituir o organismo vivo.

Apesar da sua exiguidade, cada célula é um organismo muito complicado. Não tem semelhança nenhuma com a abstracção favorita dos químicos, uma gota de gelatina rodeada por uma membrana semipermeável.

Tão-pouco se encontra no seu núcleo, ou no seu corpo, a substância a que os biologistas dão o nome de proteína. De facto, o protoplasma é um conceito sem sentido objectivo.

Tanto como seria o de autoplasma, se por meio dele se quisesse exprimir o que se encontra no interior do nosso corpo.

É hoje possível projectar num ecrã filmes de células aumentadas de tal modo que o seu tamanho seja superior ao do homem.

Nestas condições, todos os órgãos se tornam visíveis. No meio do seu corpo vê-se flutuar uma espécie de balão ovóide, de paredes elásticas, que parece cheio duma gelatina completamente transparente.

Este núcleo contém dois nucléolos que mudam lentamente de forma. À volta deles há uma grande agitação, que se produz sobretudo ao nível dum amontoado de vesículas, correspondentes àquilo a que os anatomistas dão o nome de aparelho de Golgi ou de Renaut.

Grânulos, quase indistintos, movem-se sempre em grande número nesta região, correndo também até aos membros móveis e transitórios da célula.

Mas os órgãos mais notáveis são uns longos filamentos, as mitocondrias, que se assemelham a serpentes, ou, em certas células, a pequenas bactérias. Vesículas, grânulos e filamentos agitam-se violenta e continuamente no líquido intercelular.

A complexidade aparente das células vivas já é muito grande. A sua complexidade real é muito maior.

O núcleo que, com excepção dos nucléolos, parece completamente vazio, contém, não obstante, substâncias maravilhosas da natureza. A simplicidade atribuída pelos químicos às núcleo-proteinas que o constituem é ilusória.

De facto, o núcleo contém os genes, esses seres de que tudo se ignora, excepto que são as tendências hereditárias das células, e dos homens que delas derivam.